Corpo e roupa como signos de moda: o cuidado de si a partir do olhar do outro

Pensar na moda nos dias de hoje, sem dúvida nos remete, num primeiro momento, às mudanças periódicas do vestuário. Mas não é mais possível deixarmos de fora, um outro forte elemento que ajuda a dar vida para a expressão da moda: o corpo. Na sociedade de hoje, que vive intensamente uma cultura baseada na aparência e nos valores efêmeros, é difícil excluirmos a roupa e o corpo do discurso. Tanto o corpo quanto as roupas, nas suas mais variadas formas de expressão, configuram uma relação histórica com a “produção” da moda, refletindo as mudanças desta sociedade nos seus valores estéticos, políticos e sociais e ainda expressando uma visão pessoal de cada indivíduo. Essa percepção de mudança, tão acelerada nos dias de hoje e que faz parte do que entendemos como moda, associada a construção da aparência através do corpo e da moda, cria, não só na sociedade mas em cada indivíduo que a compõe, uma intensa forma de se relacionar e se comunicar.
Neste sentido, podemos afirmar que não existe corpo nem moda fora da história e fora dos signos sociais – cultura. Estamos imbuídos em uma cultura que nos constrói ao mesmo tempo em que somos (re) construídos por ela. Nesse momento de uma moda contemporânea, o corpo torna-se mais uma forma de construção de uma relação com o grupo buscando sempre atingir aquele padrão, mas de forma subjetiva, tornando-se único e refletindo os gostos, estilos e valores daquele indivíduo.
Em torno destes signos culturais estão os padrões de corpo ideal e as tendências de moda. É a partir deles que os indivíduos pautam sua postura, frente o cuidado de si, sua relação com o próprio corpo e com os modos de adorná-lo. É também em nome desse cuidado de si que o indivíduo busca a sua inserção na vida social. O aceitar o outro evoca nossa própria aceitação para conosco.
O cuidado de si é aqui compreendido como um conjunto ordenado de exercícios disponíveis, recomendados e utilizados pelos indivíduos dentro de um sistema simbólico que tem como fim atingir um objetivo específico. Por assumir uma condição simbólica, o cuidado de si possui uma dimensão política e moral.
Sob este viés, as posturas, frente a esse cuidado consigo mesmo, implicam em processos de subjetivação/objetivação. A subjetivação se dá quando corpo e mente a ela se submetem: “quero ficar belo”. E a objetivação se concretiza no ato de assumir isso como prática: “vou fazer uma cirurgia plástica” ou “vou vestir ou usar determinado acessório corporal”, “vou me apropriar de uma moda”.
Esses procedimentos perpassam assim por cuidados médicos, higiênicos e estéticos na construção das identidades bem como é também ela o fator que demarca as diferenças. Trata-se da formação de um sujeito que se auto-controla, autovigia e autogoverna.
Neste início de século XXI, o padrão estético de corpo caracteriza-se pelo biotipo longilíneo e magro, onde “um quilinho a mais” faz muita diferença e onde, para se delinear um grupo muscular, não são poupados esforços.
Na nossa cultura da aparência, os cuidados com o corpo viraram essenciais. Hoje, sou o que aparento e estou, portanto, exposto ao olhar do outro, sem lugar para me esconder, me refugiar. Estou totalmente a mercê do outro, já que o que existe está à mostra, sou vulnerável ao olhar do outro, mas ao mesmo tempo preciso de seu olhar, de ser percebido, senão não existo.
O olhar do outro serve assim como uma espécie de panóptico sobre o nosso próprio corpo, sobre sua estética, sobre os modos de se estar na moda. Só me reconheço enquanto “belo” se meu corpo se reflete no espelho social do signo de beleza e da moda.
Uma vez construídos os signos de representação corporal – num determinado grupo ou cultura – eles fixam uma categorização social sob a qual se dá o jogo da in(ex)clusão. Estas relações estão em toda parte: nos signos de cor de pele, de corpulência, de higiene, nos modos de vestir e usar adereços, etc. O corpo pode ser assim também compreendido como um signo de demarcação e distribuição de poder simbólico.
Outro fator a ser analisado dentro desta temática é que a tecnologia e o sistema de produção, muitas vezes, configuram o humano – enquanto corpo e moda – numa cega identificação com a superficialidade.
Os hippies da década de 60, como forma de protesto à classe média/alta americana, fizeram uso de uma aparência física e vestimentas específicas para manifestar sua ideologia. As revoltas sociais estavam estampadas e se projetavam através de seus corpos: barba por fazer, cabelos compridos, roupas largas, incenso, pulseiras, brincos e tatuagens. Ao mudar seu corpo, o indivíduo procura construir, e a confirmação de sua identidade é a objetivação de uma subjetivação.
Os punks dos anos 90 foram outro grupo que se rebelou contra o modelo de beleza, que exigia corpos musculosos e bronzeados. Eles se apresentavam de pele branca e tingiam os cabelos de preto ou com cores fortes e luminosas para contrastar com o pálido da pele. Cultivavam uma magreza de aspecto doentio e vestiam somente negro.
No entanto, hoje podemos entrar no shopping e comprar um “hippie” ou um “punk” sem nem compactuarmos de tal ideologia, ou mesmo, sem termos sequer o conhecimento da mesma. Se os hippies da década de 1960 encarnavam um sujeito, o hippie do shopping encarna um artifício submetido pela moda e pelo acessório.
Não se trata aqui de negarmos que não existam mais “tribos” que tenham seu héxis corporal e roupa ligados a sua ideologia e regimes de verdade. Há inúmeras comunidades urbanas que assimilam a adesão num determinado grupo através da apropriação de determinados signos em seu corpo e vestuário. O piercing, a tatuagem ou outro adereço ou marca podem, de maneira significativa, inscrever no sujeito sua identidade… Seu sincretismo. Eles podem significar um rito de passagem, um sinal de transcendência. No entanto, não se pode negar a apropriação que o capitalismo faz das várias imagens ideológicas, colocando-as no mercado, destituindo-as de sua essência ideológica, ou seja, superficializando a ideologia.
Assim, percebemos que corpo e roupa sempre serão atravessados pelo olhar do outro e o olhar do outro será o nosso ponto de referência na construção de uma relação com o mundo e conosco mesmo, ou seja, com o cuidado de si.

Publicado na Revista Catarina.

Escrito em parceria com Fabio Zoboli

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